Catedral do Mar é uma minissérie produzida entre a uma parceria do Netflix Espanã e Antena 3, um canal da televisão aberta espanhola. É baseada no livro de Ildefonso Falcones, publicado no ano de 2006, com mesmo nome. Idelfonso é escritor e advogado barcelonês. Ficou famoso, pois seu livro foi premiado de forma grandiosa na Europa. Nós do História e Combate Medieval, assistimos a série, do ano de 2018 e apontaremos algumas impressões sobre esta obra cinematográfica.
Antes de iniciarmos nossas impressões, vamos começar pelos apontamentos mais sérios. Basta efetuar uma simples e rápida pesquisa, para percebermos os efeitos e impactos que uma obra e trabalhos de drama podem causar nas pessoas. Agora, vejamos: Catedral do Mar é uma obra de ficção histórica, ou seja, muitas vezes ambientada em um período histórico e não significa que toda e qualquer informação presente seja verdade absoluta. Por mais que haja uma busca em pesquisa histórica, até um dos maiores escritores do gênero, não buscam retratar com exatidão o período. É o que ocorre com os romances históricos de Valério Massimo Manfredi, Bernard Cornwell, dentre outros. Afinal, estamos falando de drama, romances históricos.
A série e a obra retratam grandes reveses da vida, ela trabalha diretamente com situações extremamente delicadas presentes na sociedade, nos forçando sempre a ficar pensativos e até emocionados. Algumas situações mostram a dureza da vida e são até pesadas para alguns telespectadores. Vamos então as considerações.
Leis Medievais
Um tema constantemente abordado por Idelfonso nas obras é o conceito de leis e justiças. Naturalmente, há uma grande influência de seus estudos e sua profissão, o que fica evidente ao observarmos algumas considerações. Por mais que seja uma ironia da obra, as leis são os objetos mais delicados de Catedral do Mar, escrita por um estudioso das leis modernas, não medievais.
Devemos ter em mente que as leis medievais formam um conjunto do ordenamento jurídico que misturava o direito consuetudinário com o direito romano. Catedral do Mar se passa no Reino de Aragão do século XIV, portanto vamos analisar algumas particularidades.
Prima Noctre: Uma das primeiras cenas da série é a bucólica vida campesina. Bernat Estanyol estava se casando com Francesca Esteve. Tudo ia bem até a aparição do barão local, que reivindica um dos assuntos mais controversos, entretanto superados pelo estudo histórico: O direito da pernada, também conhecido como Jus Primae Noctis ou Droit Du Signeur. A mulher de Bernat é fortemente violentada, agredida enquanto o pobre homem deve ainda testemunhar os fatos. Depois, é obrigado a contrair relações com sua mulher, em frente aos homens deste infame barão.
Primeiro, devemos mencionar que os vestígios que temos sobre esta infame e repugnante prática, geralmente está presente em fontes literárias, exatamente com o intuito de utilizar-se das emoções daqueles que estão assistindo, lendo ou escutando uma história. Está presente no imaginário do homem devido a sua natureza hedionda: Aparece no Épico de Gilgamesh, Heródoto alega sua existência na Líbia (há de se estudar Heródoto com cautela, pois o historiador gregos costuma alterar certos fatos, principalmente com povos que considerava extremamente bárbaros ou selvagens).
Qualquer outra fonte medieval crível não possui acostamento histórico. Seja dentro do ordenamento jurídico dos Estados ou documentos apresentando, o “direito de pernada” não merece prosperar como uma fonte crível e historicamente acurada.
Ademais, podemos perceber fontes após o fim “clássico” da Idade Média (1453), que existem grandiosos esforços do homem moderno para difamar e criar diversos mitos sobre o medievo. Primeiro, logo na Escócia no século XVI temos um erro do historiador Hector Boecce quando aponta os “costumes bárbaros” das reformas do Rei Michel III no século XI. Antes disso, os italianos no século XV, já haviam começado com difamações para tentar associar a Idade Média a “Idade das Trevas”. No século XVII, com o surgimento do iluminismo, a situação se escalona, e todo o conceito de uma “sociedade bárbara feudal” é criada, alegando que não há razão, apenas força e fanatismo religioso, tudo isso para criticar as instituições do antigo regime e pavimentar as ideias de revolução.
No século XVIII e XIX, ainda temos fortes evidências da busca de apresentar tal prática como verdadeira: O Barão de Montesquieu a cita no “Espírito das Leis”, mas não desenvolve sobre o assunto, Voltaire a apresenta no Dictionnaire philosophique e a adiciona em obras, assim como outros artistas influenciados pelo iluminismo, sempre associando a pratica ao antigo regime. Engels, em “Origem da Família”, apenas apresenta o ato como um ato antropológico, mas sempre de maneira para pavimentar os argumentos políticos e não históricos.
Efetuando um simples paralelo, o filme “Coração Valente”, que retrata Mel Gibson como William Wallace, possui exatamente a problemática do Jus Primae Noctis e com isso, sofreu grandes críticas de estudiosos e da comunidade histórica. Podemos encontrar mais de uma dissertação, por exemplo, em universidades como Milão e Cambridge sobre o assunto.
Violência Sexual e Punição: Bernat, com todos os reveses de sua vida, consegue ter um filho com Francesca. Sabe-se que o pequeno Arnau é realmente filho do casal, pois Arnau possui uma marca de nascença de seu pai, uma mancha próximo ao olho. Entretanto, o barão local a rapta, onde sua vida mudaria para sempre.
Válido ressaltar que violência sexual nunca foi bem visto em nenhum momento da sociedade. Na Idade Média, o ordenamento jurídico era bem restrito sobre esta prática.
A mentalidade medieval tinha grande ênfase acerca da honra. Não aquele estilo de honra que nos vendem os filmes, mas a honra como um bem imaterial do ser. Crimes de violência sexual, envolvem diretamente a violação da honra e danos contra a própria integridade física. Um dos casos mais icônicos, estudados e com comentários inclusive no iluminismo, imortalizado pelo cronista francês Jean Froissart, é sem dúvidas o caso de Margarete de Carrouges, que foi violada por Jacques Le Gris. Em caso de perda de seu marido pelo julgamento por combate, seria queimada em praça pública por perjúrio.
A mulher medieval, como podemos ver nos trabalhos de Marc Bloch, Jacques Le Goff, Jean Flori, Régine Pernoud entre outros respeitados medievalistas, tinha direitos e não eram marginais a sociedade. Fazer um paralelo, portanto com a sociedade medieval e a pós moderna pode-nos fazer cair inclusive em anacronismo. Acusações de estupro podiam ser movidas pela própria vítima sem a representação de pais, irmãos ou maridos. Trataremos a seguir de alguns curiosos casos que mostram que Catedral do Mar, pode nos levar a uma perigosa noção de realidade ao passado medieval.
Em Glasgow, uma serva chamada Isobel Burne foi violada por John Anderson. A virou de costas, deu-lhe um golpe na cabeça e citou “palavras sujas e abomináveis, indignas de serem ditas novamente”. Anderson confessou o caso, alegou que Isobel falava a verdade, foi declarado culpado, banido da cidade “pela grande ofensa a Deus e aos danos a Isobel”. Vale lembrar que Isobel era serva e o tribunal ficou a seu favor. John era mais poderoso que ela e mesmo assim, a justiça fora feita.
William de Hadestock e sua prometida Joan chegam até os tribunais da Inglaterra, que no verão de 1269, James de Montibus adentrou na casa de Joan, com homens armados, “fechou a porta, colocou o vestido até o chão, atirou-a no chão, quebrando seu dedo”. James foi preso, William ficou a seu lado durante as acusações no tribunal e mesmo os fatos terem ocorrido antes do casamento, os votos não foram quebrados (caso fosse, a sentença deveria ser ainda mais severa). Montibus apenas pode ser liberto novamente após pagar uma compensação financeira.
Na fronteira de Gales, em 1405, Shropshire, Roger de Pulesdron, um violador, foi rendido por Isabella Gronowessone e suas duas filhas, amarrado com uma corda em seu pescoço, teve seu cavalo roubado e seus testículos cortados. O tribunal perdoou a ação das três mulheres, justificando que a atitude foi uma forma de justiça atuante diante do hediondo delito de estupro.
Houve também um curioso caso em 1292 que um médico foi condenado, pois Isabella Plomet foi drogada pelas substâncias químicas, ficou impossibilitada de qualquer reação ou percepção de sua realidade e fora violada. O tribunal entendera exatamente que a droga cedida pelo médico foi o fator determinante como uma ferramenta que facilitou a violência sexual.
Desta forma, estupro na Idade Média era visto na maioria dos ordenamentos jurídicos dos Reinos e das Repúblicas Mercantes como um crime de propriedade, ou seja, estendia-se tanto a esfera civil como a criminal. As sentenças variavam de compensação financeira, banimento, castração, enforcamento e vazamento dos olhos. A vítima tinha que seguir a uma das autoridades imediatamente após o delito ocorrer, denunciar publicamente o ocorrido, efetuar diversas narrativas idênticas as autoridades, aos oficiais de justiça, bailios e mostrar evidências da violência do ataque ou reunir o conjunto probatório. Os ordenamentos jurídicos também possuem algumas de suas particularidades, naturalmente, por exemplo: os professores da Universidade de Oslo, Fredrik C. Ljungqvist e Hans J Orning alegam que crimes sexuais na Idade Média existiam, por de fato, mas não eram tão comuns como a cultura popular visa demonstrar.
Dívidas: Outro ponto muito tocado na série, marcante, são as leis voltadas a dívida monetária. Arnau se torna cambista, um ofício que no século XIV, começava a mudar as faces da sociedade urbana medieval. Uma das icônicas cenas que intriga os espectadores é a explicação sobre o ordenamento jurídico aragonês. O período em que a Catedral do Mar é construída, que Bernat e Arnau viveram, as reformas legais de Jaime I, o Conquistador, havia implementado no reino.
Era um conjunto de leis que foram organizadas e estudadas nas Cortes de Huesca em janeiro de 1247. Possuem a Compilatio Maior e Menor. Maioria de textos latinos. O Rei Pedro III, outorga o Privilégio Geral no ano de 1283, consequência dos atos das Guerras das Vésperas Sicilianas e da excomunhão do Rei Pedro III, que teve suas coroas interditadas e entregues ao Rei da França. Para isso, a nobreza, os prefeitos e chefes de vilas peticionaram e buscaram o apoio do rei para que este confirmassem os fueros, costumes, privilégios e liberdades do Rei e dos oficiais do Reino de Aragão.
Em um momento tão delicado da coroa de Aragão, temos Arnau tentando conseguir uma ascensão econômica em sua vida. Sahat explica a Arnau que caso contraia dívidas enquanto é um homem de negócios na agitada Barcelona, deverá ter um tempo específico para saldar suas dívidas, caso não o faça seus bens serão penhorados e por fim, caso nenhuma possibilidade seja resolvida para saldar a dívida, haverá a prisão e execução do mal pagador. Seria isso verdade? Para isso, temos de observar os fueros, e as leis de Jaime I. Podemos dizer que Idelfonso Falcones acerta em partes, mas tem um erro grave.
Dívida e penhora nos regimes legais de Aragão na época eram bastante complexos. Para tornar a coisa mais complexa ainda, o Rei Jaime I e isso se estende ao reinado do Rei Pedro III, a coroa de Valência possuirá uma jurisdição e ordenamento jurídico próprio, não unificado com Aragão. Penhora será um instituto do direito romano importado e lapidado para com a realidade medieval. As leis aragonesas possuem um capítulo pura e exclusivamente sobre penhora. Prisões envolvem crimes de natureza civil, criminal. Ou seja, geralmente poderia ser associada caso a má fé ou a falta de credibilidade, honra ou boas intenções do devedor fossem comprovadas. Sua execução, porém, é o grande problema constatado na série, o abatut, do catalão, derrubar, colocar abaixo. Penas de morte devem ser analisadas com calma, principalmente no contexto aplicado. Após o século XIII e XIV, diversos banqueiros e credores quebraram por diversos problemas, inclusive a peste. Muitas vezes, para homens do dinheiro, como eram, uma “morte pública e comercial” seria até muito pior do que uma execução pública. Ademais, a dívida era um problema que estava começando a se maximizar, consequência de um renascimento comercial e de circulação de dinheiro.
Sociedade
Seguindo a ideia do bispo Adalberon de Laon, a sociedade feudal era dividida de forma tripartite: Laboatores, Oratores, Bellatores. Com base nesta estrutura, trataremos como a série retrata estas estruturas sociais.
Sociedade Campesina: Os camponeses em Catedral do Mar são retratados de forma extremamente caricata e pode nos passar uma noção bem diferente. Naturalmente, como podemos perceber nos diversos estudos acerca da sociedade feudal, a massa campesina era a grande mão de obra do medievo. Eram homens do campo que tinham direito a um quinhão de terras cedido pelo senhor da região e deveriam cumprir com suas obrigações. Devemos lembrar que o sistema de vassalagem é uma evolução do antigo sistema germânico do comitatus, envolvendo diretamente um conjunto de obrigações e direitos.
O camponês na Catedral do Mar é retratado como um homem muito sujo, de natureza paupérrima, de família grande, sem nem saber como alimentaria seus filhos. Parece que o conceito de direito e de dignidade não era algo que se existia no medievo e em suma, eram homens que não tinham perspectiva de vida. Oras, isso é um tanto quanto absurdo de pensarmos. Basta lermos simples observações de Regine Pernoud para termos consciência de o quão longe da realidade era. A pobreza chegou nas famílias campesinas do século XIII e XIV, como nos observa Le Goff, em função de um retorno de circulação monetária, o que fez alguns sistemas de coleta de impostos passarem a envolverem quantias monetárias e não apenas a entrega de materiais. Isso criava uma circulação de bens e de dinheiro, obrigando o camponês a se adaptar a esta nova realidade. Isso não exime, por exemplo, no momento em que Arnau recebe um baronato, de ficar impressionado com a pobreza de seus camponeses, sendo que toda a propriedade em volta da pobre família, era uma área cultivável, não cultivada. O camponês trabalha a terra, tira seu sustento dela e com o passar do tempo, este sustento foi se transformando em dinheiro. De nada adiantaria um punhado de moedas (como caritas) dada a família camponesa se não há sementes, um arado, um curral para o sustento daquela família.
Nobreza: A nobreza junto do clero, compõem as duas classes que irão moldar o corpo de liderança da sociedade feudal. Vejamos, não é difícil encontrarmos as três classes feudais totalmente alheias a sua realidade social na Idade Média. Catedral do Mar retrata uma nobreza cheia de futilidades, preocupada apenas com seus gozos e em aproveitar do que a vida têm de melhor. Temos que nos atentar com calma a alguns detalhes e a natureza de cada classe social.
Os nobres, nobiles, ou como Adalberon de Laon nos ensina, aqueles que lutam (bellatores), eram compostos por aqueles que tinham uma função de liderança e praticavam a manutenção da ordem e da proteção daqueles que trabalhavam e oravam. Hilário Franco Júnior nos mostra como a sociedade tripartite, tinha um caráter de complementaridade uns com os outros. Em Catedral do Mar, a nobreza está falida e cheia de problemas com sua própria identidade. Oras, a nobreza medieval podia constar com diversos problemas, mas sua identidade estava bem afirmada.
Neste sentido, temos a figura do cavaleiro, que infelizmente é vilanizada. O cavaleiro, era o principal meio para manutenção da ordem e da paz dentro da sociedade medieval. Eram severamente punidos quando desvirtuavam suas principais funções. Os próprios trabalhos da Igreja Católica em frente para não apenas apaziguar uma possível violência dos guerreiros e cavaleiros contra os templos, mas foi fundamental na construção do ideal do cavaleiro. Enquanto um trabalhava para a lapidação de uma função dentro da sociedade feudal, o resto da nobreza cuidava para que a justiça fosse efetivamente cumprida. Não podemos nos esquecer que a história se passa no século XIV, onde a maioria dos reinos da cristandade haviam passado pelo fenômeno que Le Goff aponta como “século da justiça”, no século XIII, unindo em grandes códigos legais o direito romano e os costumes do direito consuetudinário oriundo das migrações germânicas.
De fato, a nobreza feudal sofre com a peste negra, assim como os camponeses e o clero. Vale ressaltar que uma crise entre o campesinato e a nobreza, de nada valeria ter uma instabilidade. Se os camponeses em uma situação como a série nos retrata sempre com muita pobreza e insatisfação, de nada valeria a nobreza manter tal situação, uma vez que naturalmente isso gerariam revoltas. Graças a tais insatisfações temos revoltas na França na época da peste negra por causa da fome, fenômeno que ficaria conhecido como Jacquerie, na Península Ibérica revoltas ocorreram pela desvalorização do dinheiro no século XIII. Uma nobreza forte, precisava de uma terra estável, um camponês protegido, uma ótima safra, um clero que o apoiasse e estivesse ao seu lado, cidades controladas e com seu comércio fluindo.
Clero: Também não escapa dos problemas encontrados na série. O clero, entretanto, é marcado com uma nuance de situações. No começo da série, a figura do padre Alberto, um personagem que seria chave na figura da catedral. Padre Alberto representa o clero preocupado com a pobreza que se apossa rapidamente das cidades medievais com o “renascimento” da circulação monetária em grandes quantidades. Padre Alberto, o pároco da antiga igreja em que a Catedral do Mar está sendo construída, o que torna interessante, pois as atividades paroquiais não pararam enquanto a Catedral era construída, substituindo a antiga igreja que havia sido um templo romano.
Graças a esta atitude, padre Alberto leva Joan Estanyol a um mosteiro dominicano, onde o jovem garoto de rua seria educado, tornar-se-ia um homem letrado e erudito, conhecendo as minúcias da sociedade em que vivia. Para Arnau, padre Alberto lhe ajudara a se tornar um bastaixo, que trataremos a seguir.
Entretanto, a série retrata de forma absurdamente caricata, o Tribunal do Santo Ofício e a figura dos inquisidores, bem como todo o processo de inquisição. Para começar, a simbologia utilizada pela Santa Inquisição, cria-se uma mistura entre a Inquisição Espanhol e o Tribunal do Santo Ofício. No século XIV, apenas o Santo Ofício existia, ou seja, um órgão oriundo da Igreja Católica que atuava dentro de alguns reinos da cristandade. Era uma instituição muito organizada e seus processos eram complexos. O estandarte usado na série nos remonta a um órgão criado pela Rainha Isabel, a Católica de Castela no século XV, que era um órgão do Estado de Castela e Aragão, com auxilio e participação dos membros do clero destes Estados.
Nicolás Aymeric é o Inquisidor Geral do Reino de Aragão a partir da segunda metade do século XIV, o personagem aparece no final da trama. É conhecido por ser o autor do Directorium Inquisitorium, por seu título de “Capelão de Sua Santidade” em sua diligência em combater blasfêmias e heresias. Era monge dominicano, o que a série acerta e Idelfonso Falcones trabalha com a grande inimizade que Aymeric e o Rei Pedro IV (surge por assuntos entre Igreja e Estado, mas temos um ponto alto pela grande inimizade do Inquisidor Geral com o cavaleiro e beato Ramón Llul), o Cerimonioso de Aragão tinham, apesar de ser uma trama mal construída em seu final para o livramento de Arnau por um “crime inquisitorial” um tanto quanto descabido para época (ter uma amante judia, fato que não era real).
O julgamento da inquisição é clássico da televisão, mostra praticamente um tribunal de exceção que tem seu veredito antes do começo, falta com bastante conjunto probatório, assim nos ensina Rino Camilleri, ou por exemplo, como podemos ver nas obras de Cristian Iturralde, como as penas eram cedidas. Não podemos ficar falando a todo momento apenas de fogueiras da inquisição sem conhecer o processo inquisitivo e os princípios do Jus Puniendi, ou seja, o direito do Estado em punir, Ius Poenale, o direito penal enquanto matéria jurídica pura e finalmente o Corpus Juris Canonici, o Compêndio das Leis Canônicas. É um assunto extremamente denso e sabemos que está bem presente no imaginário popular, em sua maioria esmagadora revestido de um senso comum totalmente descabido de um estudo completo, complexo, cauteloso sobre o tema.
Dinheiro em Barcelona
Século XIV: O século XIV nos traz algumas importantes mudanças acerca do dinheiro. Os “caorsinos e lombardos”, homens do dinheiro, começavam a se espalhar por toda a Europa. Gênova, Veneza e Milão se tornam centros financeiros. No final dos século XII, nascem os cambistas, como explica Le Goff, pela necessidade em trocas das diversas moedas. Faziam suas operações em um banco, em uma mesa ao ar livre ou em regiões específicas. Arnau, participará desta função monetária. Neste contexto, de grandes mutações monetárias e de uma imensa instabilidade econômica, Arnau tentará construir sua fortuna e galgará espaço na sociedade aragonesa.
Marc Bloch nos explica como foi um século conturbado: Variações monetárias causam instabilidade, nasce o crime financeiro de “lesa majestade”, a coroa passa a perseguir falsos moedeiros, a moeda se desvaloriza, em Aragão, por exemplo, houve uma desvalorização de 1,9% de sua moeda, índices iguais de Veneza, aponta Jacques Le Goff. Rebeliões populares aparecem em virtude destes fatores. É exatamente neste contexto, que o ouro volta a ser uma moeda importante e forte na Europa, superando a prata e a política bem sucedida de Carlos Magno séculos antes. Na Península Ibérica, as moedas de ouro virão pela importação do ouro pelo Mali, pela Rota do Ouro, Europa Central pelas minas de ouro de Kremnica, Reino da Hungria a partir de 1320 e Veneza e Gênova trarão ouro do Oriente.
Arnau Estanyol deve muito a Sahat ou Guíllem, um escravo fornecido por um amigo seu judeu, que desta relação nasceria uma amizade. Sahat, sendo islâmico e familiarizado com o comércio, auxiliará Arnau a crescer no ramo, possuindo diversos contatos. A figura de Arnau pode ser compreendida como a aparição dos cristãos no meio do universo monetário da Península Ibérica.
Judeus e o Dinheiro: A relação entre os cristãos e judeus na Península Ibérica sempre foi conturbada. Nos atentando apenas ao reinado de Pedro IV e os judeus em Barcelona, faz-se importante perceber que a série vai muito além com a figura de Hasdai Crescas, filósofo sefardita, conhecido por ser rabino de Barcelona e Zaragoza. Altamente instruído, a série deixa claro que Crescas era um homem de posses e instruído, autor de fato de diversas obras, mas viaja no imaginário inquisitivo e pejorativo queimando o filósofo em praça pública, contribuindo para a manutenção dos erros da inquisição. Foi preso durante sua vida e sofreu acusações que foram provadas rasas.
O filho de Hasdai Crescas, é morto durante um dos pogroms que ocorreram em Barcelona, ondas de hostes de cidadãos que atacavam os bairros judeus linchando os habitantes. Este tipo de atitude acabou ocorrendo na época da Peste Negra, pois os cidadãos comuns acreditavam que os judeus eram os criadores da peste, por viajarem demais, podiam trazer a peste de um lugar para outro, pois eram povos que se dedicavam geralmente as artes liberais e ao comércio e em tempos de Páscoa, época em que os ânimos ficavam exaltados pela participação dos rabinos na prisão e crucificação de Cristo.
A Fé do Homem Aragonês
Santa María de La Mar: Localizada no barrio de La Ribera, buscava superar a beleza da catedral gótica, presente no bairro gótico catalão, que era financiada pelo Rei e pela Igreja de Aragão.
É uma das catedrais mais impressionantes da Europa, em seu estilo gótico, por sua história. Sua construção a série demonstra com riqueza de detalhes, o tempo de uma catedral gótica em sua magnanimidade com o estilo catalão aragonês. Construída entre os anos de 1329 a 1383, desenhado pelo arquiteto Berenguer de Montagut. Seu interior possui uma grande impressão de espaço e claridade. É uma catedral, mas seu interior lembra uma basílica. Não há separações arquitetônicas entre o presbitério e a nave e não há transeptos.
Bastaixos: São um dos maiores focos da série. Sua história possui uma relação íntima com a catedral e a história de Barcelona, com a fé do homem medieval, sua devoção a Santíssima Virgem Maria, homenageada com a construção da Igreja. Imortalizados de forma belíssima em trabalho nas portas da Catedral do Mar, os bastaixos, também conhecidos como macips de ribera, eram trabalhadores de porto, ou seja, estivadores dos portos de Barcelona.
É um ofício que surge nos séculos XIII e dura até o XIV, passaram a se organizar em uma confraria. Eram de origem bem humilde. Sua organização, permitiu sua existência, pois a confraria se preocupava e ocupava-se em ajudar seus iguais e os poucos recursos que eram doados aos cofres, destinavam-se a assistência dos cidadãos e anciãos, bastaixos já velhos.
Para a construção da catedral, como era uma “Catedral do Povo”, cada um ajudava como podia ou de acordo com sua realidade. Os homens livres mais abastados, contribuíam com quantias financeiras. Os Bastaixos, carregavam as pedras em suas costas desde a pedreira até o distrito portuário onde a Catedral de Santa María del Mar se encontra. Era um trabalho extremamente pesado e os homens assim o fizeram por fé e devoção pela Virgem Maria, muito presente no mundo católico. Neste caso, a fé não apenas moveu montanhas (retirada de pedras), mas também as convicções do homem medieval a transformou em uma catedral, construindo em impressionantes 54 anos.
Veredito
O drama e a ficção histórica tornam a série Catedral do Mar praticamente única em seu contexto. Apesar de muitos assimilarem a obra de Idelfonso Falcones com os Pilares do Céu e da Terra, há bastante diferenças não apenas na caracterização geográfica e social da estória, mas em como todo o plano de fundo histórico.
Apesar dos pontos negativos muitas vezes corroborarem para a manutenção das lendas mais comuns e rasas acerca da Idade Média, como por exemplo a ausência de “leis justas”, sensação de anomia, camponês extremamente sujo, pobre e sem esperança de vida, uma nobreza de mentalidade nobiliárquica sendo representada praticamente como uma nobreza do século XVIII com amplas influências dos burgueses e um clero que nos concede sempre a impressão do abuso de autoridade uma vez que certos membros da Igreja Católica estavam simplesmente acima de tudo. Não podemos esquecer, que apesar de ter buscado informações sobre a época, Idelfonso Falcones em uma entrevista ao Cataluña News diz que antes de começar a escrever, possui boa parte da trama principal pré-moldada em sua mente e assim vai dando corpo a história. Neste sentido, podemos então perceber o emprego das lendas medievais na trama.
Os personagens são muito bem trabalhados por Idelfonso e a série conseguiu trazer esta profundidade na história: Não apenas os protagonistas, mas os principais nomes que os cercam, possuem uma história, podemos perceber sua natureza, motivações em intenções que fornece uma boa consistência a trama. O amadurecimento e o desenvolvimento intelectual, proveniente do tempo e das decisões e fatores da vida cotidiana são um ponto bastante positivo.
Desta forma, Catedral do Mar alia conceitos que nos faz adentrar na estória e pensar o que faríamos no lugar dos personagens. Trabalha conceitos de justiça, verdade, amizade, família, dinheiro e a fé. Arnau e Juan, sempre estiveram intimamente ligados a Virgem, contando-lhes suas aflições e recorrendo a uma proteção materna de dois jovens “órfãos” que pela fé, encontram proteção e amor fraterno e materno em Santa María Del Mar.
Fontes: LE GOFF, Jacques. A Idade Média e o Dinheiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
FRANCO JR, Hilário. História da Idade Média, o nascimento do Ocidente.São Paulo: Brasiliense, 2006.
CANELLAS LÓPEZ, Ángel, ZURITA, Jerónimo, Ed. Anales de la Corona de Aragón. Institución Fernando el Católico, 1989.
MOTIS Dolader, Las comunidades judías en Aragón en la Baja Edad Media. Atlas Histórico de Aragón, Institución Fernando el Católico, 1999.
ESPANÃ. Compendio de Leyes de Aragon. Acervo Histórico Federal da Catalunha.
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