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Ascenção: Império Otomano (Rise of Empires: Ottoman- Netflix - 2020)

Atualizado: 8 de set. de 2020

A segunda resenha do História e Combate Medieval vai abordar uma série que talvez alguns ainda não tenham visto na Netflix: Ascenção: Império Otomano. Obviamente que a série é sobre a ascenção dos otomanos mas o trecho específico mostrado durante toda a série é a queda de Constantinopla, quando então a cidade é invadida por Maomé II e o Império Bizantino chega ao seu final melancólico já desenhado muito tempo antes.

O formato

A série mostra um aspecto inovador e que pode ser considerado bastante interessante: Há várias inserções de trechos de entrevistas com historiadores, corroborando o que é mostrado na parte dramatizada. Este ponto dá uma credibilidade maior ao espectador que veremos adiante se realmente se transforma em certeza de que a parte histórica era tão apurada e foi uma das premissas em detrimento da dramatização, como vemos acontecer em diversas outras séries e filmes.

Porém, é importante constatar que essas pausas para inserções com os historiadores, de maneira alguma, quebra o andamento da parte dramatizada, tornando a série entrecortada ou enfadonha. O que vemos, na realidade, é uma dinâmica diferente, que leva o espectador ainda mais para dentro do período histórico, mostrando o que, de fato, aconteceu – ou o mais próximo disso, obviamente.

Visualmente, sem querer entrar na parte de acuracidade histórica, a série estava perfeita. Notamos um esforço contínuo em estar inserido no período e nas condições em que a série se passa – um cerco medieval que duras semanas e suas escaramuças para a invasão de uma das maiores e mais bem guardadas cidades do medievo: Constantinopla.

O entretenimento e os atores

Como entretenimento, a série cumpre fielmente seu papel. Vemos uma parte dramatizada perfeita, dentro das limitações de reconstituição. Vemos personagens desenvolvidos e que, ao pesquisarmos um pouco da história, condizem com o retratado na série. E também vemos algo que vai nos inserindo na parte realmente histórica do evento da queda de Constantinopla, que são as entrevistas com os historiadores no meio da dramatização.

O tempo de duração dos episódios não os torna cansativos (uma média de 45 minutos para cada episódio) e o número final de episódios da temporada não a torna desmotivante (são 6 ao todo). Alguns vão, inclusive, conseguir “maratonar” em um ou dois dias toda a temporada e acabarão se perguntando se existirá uma sequência falando sobre a contínua invasão dos otomanos pela Europa... (Será?) Ao mesmo tempo em que os que têm menos tempo disponível por dia, verão a série tranquilamente durante uma ou duas semanas, saboreando cada episódio e detalhe (histórico e dramático) da série da melhor forma que lhe convier.

Sobre a parte técnica da série o que podemos falar é que grande parte do elenco foi escolhida localmente. A série foi filmada em Istambul e aproveitou atores locais, sem projeção mundial em outros filmes e séries. A exceção fica por conta da narração da série, que é feita por Charles Dance. Charles possui mais de 40 filmes em seu currículo mas, talvez, seja mais reconhecido pelo seu papel como Tywin Lannister, na série Game of Thrones, encerrada em 2019.


Os demais atores, que não podemos deixar de mencionar, são o turco Cem Yigit Uzumoglu, que interpretou o Sultão Maomé II, o italiano Tommaso Basili, que interpretou o Imperador Constantino XI, a atriz turca Tuba Buyukustun, que representou o papel da Sultana Mara Brankovic, e o também turco Birkan Sokullu, que viveu o mercenário Giustiniani na série.

Os destaques nas atuações ficaram por conta de Cem, Basili e Sokullu, que puderam desenvolver durante boa parte do tempo seus personagens – e, obviamente, com mais fontes históricas para ajudá-los nesta tarefa. Não seria um espanto se, brevemente, avistássemos algum deles em outras séries ou filmes com maior apelo midiático.

Comentários históricos

A série nos deixa com um sentimento bastante curioso ao analisarmos pela perspectiva histórica. Inicialmente, devemos observar duas análises conjuntas. A primeira, sobre o contexto narrativo, ou seja, a forma como os historiadores estão descrevendo os fatos, são todos muito bem pacificados dentro da comunidade histórica, ou há outras doutrinas divergentes?

Também devemos nos atentar também a criação e ambientação dos personagens enquanto uma série, na criação do ambiente histórico e na tentativa de recriar um passado. O mesmo, devemos analisar a função de diálogos de alguns personagens também.

Historiadores da obra

Sobre os historiadores, temos uma pequena nuance de comentários históricos. Podemos observar uma série de historiadores, não necessariamente seguindo a mesma linha de corrente histórica – vide que há historiadores que defendem que o Império Bizantino ou Romano Oriental não caiu, mas fora puramente continuado pelo Império Otomano, ao passo que outros historiadores entendem que houve, de fato, uma queda.

Sabemos que a Turquia, possui uma corrente historiográfica bastante parecida com a dos Estados Unidos, ou seja, a história destes povos vai além do quesito acadêmico e historiográfico enquanto o homem em seu tempo. É uma história que se torna quase uma propaganda de legitimação dos atos de um povo. Sim, a história turca, muitas vezes, passa por uma valoração exagerada dos fatos. Sempre que observamos um dos historiadores turcos comentando algum fato, podemos observar uma supervalorização da história de seu povo. E nada melhor que legitimar o poder otomano, falando da queda de Constantinopla.

Cenário político

Inicialmente, devemos lembrar ao caro leitor um importante fato: Todas as características atribuídas a Constantinopla, eram verdade. Era uma cidade importante, poderosa, prestigiada, cobiçada por muitos, cheia de comércio (apesar de estar em plena decadência) e era considerada o portão entre oriente e ocidente. Constantinopla era uma cidade riquíssima em vários aspectos.

As relações dos bizantinos com os povos do resto do mundo, entretanto, eram um pouco conturbadas. Constantinopla havia pago vários tributos o que fazia sua soberania começar a ser questionada ao mundo islâmico, que era regado de sonhos e ambições acerca de um único líder que iria unificar o mundo islâmico como nos tempos da grande expansão.

Com o ocidente, as relações políticas não eram boas. Os cruzados haviam sido derrotados na Batalha de Varna e o ocidente mantinha grandes receios com os bizantinos, seja pelos massacres de Latinos e as rivalidades com Veneza e até os eventos que levaram a Quarta Cruzada e a queda de Constantinopla e instauração do Império Latino.

Viver um cerco não era tarefa fácil em momento algum. Isto, o documentário mostra de forma bastante interessante. Devemos ainda relembrar que há uma importante causa não vista na história até aquele momento: Canhões usados em massa. Principalmente, a “Basílica”. De fato, as muralhas aguentaram o máximo que puderam e todas as defesas da cidade, tiveram de ser “dribladas”, como assim Maomé II o fez.

Há uma grande preocupação otomana retratada na série de que os ocidentais enviariam reforços. De fato, havia o temor de um exército que viria para derrubar o cerco, mas Maomé sabia que os reforços partiriam de Repúblicas Italianas que discutem demais no senado e suas ações são demoradas. Havia uma preocupação muito maior com a instabilidade dos vassalos otomanos e com uma possível rebelião nos Balcãs do que propriamente um exército de salvação.

Quem enviou um pedido de paz, foi o Sultão, mais de uma vez. Inicialmente pouco antes de cerco e, depois, enquanto estava em momentos críticos, quando descobriu que partes de seus territórios haviam se rebelado. Constantino XI se recusou a aceitar os termos e Maomé II então decide liberar a cidade para ser saqueada. Saque este, que durou três dias de muitas mortes, estupros e captura de pessoas. Estima-se que, pelo menos, mais de 30 mil pessoas foram escravizadas. A nobreza local que sobreviveu foi executada, assim como apontam registros do período.

Biografias

As biografias mais interessantes para apontarmos, passam pelo Sultão e Constantino. Maomé II era um homem cheio de altos e baixos, mas há uma valoração de entretenimento no show. Teve uma educação rígida e algumas importantes lições devem ser mencionadas: A mãe de Maomé foi Huma Hatum, sendo provavelmente uma convertida ao islã e sua origem é disputada: Podendo ser uma nobre ou escrava grega, italiana, sérvia e até judia. Também, devemos lembrar que filhos ilegítimos não eram uma prática comum otomana. Cada uma destas teorias, são explicadas na obra de Franz Babinger.

Ademais, o sultão era bastante temperamental e sua educação foi rígida. A nobreza islâmica sofria importantes sanções enquanto jovens, mas não a família real, descendentes de Osmã. Derramar sangue real era um péssimo sinal e até crime, tanto que a execução de membros reais se dava por enforcamento.

Constantino XI Palaiologos, aparece como um homem fraco, indeciso e cheio de receios. O peso que levava em sua coroa imperial era imenso, mas Constantino, de longe, foi um dos maiores imperadores de toda a história bizantina. Uniu o ocidente ao oriente, combatia as intrigas e até buscou findar o Cisma do Oriente, a separação das Igrejas Romanas e de Constantinopla. O Imperador morreu bravamente defendendo a cidade e ficou famoso por sempre estar comandando os soldados durante o cerco, não apenas assistindo aos eventos.

Outro personagem importante a se observar é Giovanni Giustiniani. Para uns, um pirata infame, para outros, um mercenário (condotierri) e para outros, um forte guerreiro. Devemos mencionar que a série se contradiz ao apontar que apenas os otomanos tinham uma força profissional como exército na Europa e ao mesmo tempo fala no profissionalismo de Giustiniani com cercos nos conflitos italianos.

Afastando o grande romance de Giustiniani, o capitão mercenário teve um importante papel na defesa da cidade. Além disso, sua relação com Loukas Notaras é bastante floreada. Ainda sobre o ministro chefe bizantino, sabemos que ele possuía relações com alguns otomanos, mas que provavelmente seus encontros não eram frequentes e que Notaras foi um dos comandantes de defesa, liderando os homens no portão noroeste, que dava acesso ao mar. Inicialmente, Notaras foi capturado e havia uma ideia de usá-lo para ajudar a reestabelecer ordem e suas habilidades como administrador para o comércio com Veneza. Maomé II por sua vez deixa de ser clemente por entender que seria perigoso manter um bizantino influente e rico vivo. Edward Gibbon acredita que Notaras foi pego em um esquema de intriga e finalmente executado.

A indumentária

Principalmente entre os personagens turco-otomanos a indumentária da série é muito boa. Na parte dos bizantinos e genoveses, fica um pouco a desejar na autenticidade mas, de toda maneira, há uma certa coerência histórica. Vejamos os detalhes.

Turco-Otomanos: A indumentária dos personagens turcos é excelente, com poucos pontos que merecem observações críticas. As melhores vestimentas em termos de autenticidade são as dos Vizires mais velhos, pois como estes homens eram Paxás (título de nobreza turco), suas vestimentas são mais opulentas e com cores vibrantes, algo visualizado na série perfeitamente. Ainda entre os Vizires mais velhos, seus turbantes estão no tamanho e desenho perfeitos para a época (século XV), o mesmo se aplica para o turbante utilizado pelo Sultão Maomé II.

Outros artigos de chapelaria que merecem destaque pela excelente reconstituição de época, são os chapéus. Os dos janízaros, chamados de bork, e os de pele de animal usados pelo Sultão e seus Vizires, chamados de yasir. Além dos chapéus utilizados pelos homens, o chapéu da Sultana Mara Brankovic é histórico e merece uma pontuação de cunho cultural: No Império Turco-Otomano a mulher não tinha a obrigação de cobrir o rosto e muito menos os cabelos, algo em contraste direto com as cortes europeias, onde a mulher precisava cobrir seus cabelos.

As vestimentas, de maneira geral, entre os personagens turcos são bastante fidedignas com a história; com exceção das infames armaduras de couro, utilizadas pelo próprio Sultão em alguns momentos e seus Vizires mais jovens. Entretanto, as armaduras de aço são bem próximas das autenticas, já que misturam placas de aço com malha de anéis feitos de aço, as únicas observações para estas armaduras é o fato de as placas serem pequenas demais, mas o seu desenho é totalmente coerente com os exemplares históricos. Os elmos utilizados pelo Sultão e seus Vizires são do estilo conhecido como Elmo de Turbante, oriundo do Império Turco-Otomano durante o século XV, na mesma época em que é ambientada a série. É, portanto, uma indumentária correta e que ficou perfeitamente alocada na série.

Quanto as indumentárias dos janízaros, a série a apresenta de maneira muito coerente e autentica suas roupas de combate e armas. As únicas observações são a falta de variedade na coloração de suas roupas pois, além de vermelho, alguns janízaros utilizavam túnicas azuis ou verdes. Outra falta de variedade entre os janízaros são das suas armas pois, além do kilij (cimitarra de estilo turco), eles usavam machados curtos, alabarda, yatagan (sabre de estilo turco, comumente relacionado com os janízaros), arco (como mostrado na série) e arcabuz (que mais tarde se tornaria a principal arma destes soldados).

Um último ponto que merece ser pontuado acerca da autenticidade são as bombardas turcas mostradas na série. Estas enormes e imponentes armas de fogo foram muito bem representadas na série, ficando exatamente como as bombardas utilizadas pelos turcos durante a queda de Constantinopla.

Bizantinos e genoveses: Na autenticidade a série cometeu alguns equívocos importantes para indumentárias dos bizantinos e genoveses. A primeira peça recorrente usada pelos cristãos que podemos destacar são as espadas irlandesas do estilo Gallowglass, que surgiram como espadas longas durante o século XIII na Irlanda e reapareceram, no século XVI, como espadas montantes. Outras peças que também pecam pela falta de autenticidade são as armaduras e elmos utilizados pelos bizantinos; as armaduras dos bizantinos na série são de couro mas, na verdade, os bizantinos utilizavam armaduras feitas de escamas e placas lamelares, ambas de aço. Os elmos usados pelos soldados bizantinos se assemelham um pouco aos do século XV, mas com algumas diferenças: Os elmos destes soldados, geralmente, não tinham protuberância no topo e o rosto do soldado ficava coberto por uma malha feita com anéis de aço, com a exceção dos olhos. Os elmos utilizados pelo Imperador Constantino XI são autênticos, mas de desfile e oriundos da Europa Ocidental no século XVII.

As armaduras dos mercenários genoveses são as mais próximas das autênticas entre os personagens cristãos pois, como estes homens eram mercenários, tinham um poder aquisitivo alto o suficiente para comprar armaduras de placas – como a couraça utilizada pelo capitão Giovanni Giustiniani. Seus elmos também são muito próximos dos autênticos pois se parecem muito com as barbutas vistas em museus e coleções particulares. O próprio Giovanni utiliza um elmo autentico, chamado de Grão-Bascinet. A única observação quanto a este estilo de elmo é que os soldados e cavaleiros que faziam uso deste elmo é que, ao lutarem, eles o faziam com o visor aberto para enxergar melhor e para coordenar melhor o ataque de seus subordinados. Outra peça que merece destaque pela proximidade das peças autênticas são os largos escudos retangulares chamados de pavise – tais escudos eram principalmente utilizados para proteger os besteiros enquanto eles carregavam suas bestas.

As roupas dos nobres bizantinos, pelo Rei da Sérvia e pelo governador de Gálata são muito próximas das vestimentas dos nobres bizantinos da época – longas túnicas extravagantes e com cores vibrantes. Os cortes não estão perfeitos, de acordo com as peças históricas, mas, de toda maneira, estão muito próximos das roupas da época. A série caracterizou perfeitamente a roupa do Imperador Constantino XI, ao colocar o dourado para dar um ar extravagante e adicionaram o roxo imperial, símbolo do Imperador Romano desde dos tempos primordiais e tal tradição se manteve no Império Bizantino. A única observação significativa quanto a indumentária do Imperador, é a sua coroa aberta: A coroa aberta era um símbolo de Reis e Duques, enquanto Imperadores utilizavam coroas fechadas. Como em muitas representações contemporâneas ambientadas durante o medievo, os personagens bizantinos carecem de artigos de chapelaria, assim como na Europa ocidental tais vestimentas eram muito comuns e por vezes peculiares como os skiadion, chapéus utilizados pelos Déspotas das províncias imperiais bizantinas.

Um ponto que foge da indumentária mas merece destaque é, infelizmente, um outro elemento que acaba destoando do restante: As naus genovesas que chegam carregando tropas e suprimentos são muito grandes para as embarcações da metade do século XV. As da série se parecem muito, tanto no tamanho como na aparência, com as embarcações do século XVIII.

Conclusão

Depois de nossa análise conjunta, a série apresenta mais acertos do que erros e pode ser qualificada com um alto grau de acuracidade histórica, além de uma boa fonte de entretenimento. Quando as duas coisas se encontram e se harmonizam em uma série ou filme, podemos julgar que ela merece destaque dentro do que se propõe. É bom destacar que os problemas encontrados e apontados aqui, de forma alguma desabilitam a série como um bom entretenimento que pode e deve ser aproveitado como tal.

Seja torcendo por um fim honroso de Contantino XI e sua Constantinopla ou por uma invasão e conquista otomana comandada por Maomé II o Conquistador, não deixem de apreciar a série Ascenção: Império Otomano na Netflix.

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